Relatório do ISA comprova que projetos herdados da ditadura militar ativam invasões em terras indígenas e ameaçam povos isolados

As terras Jacareúba-Katawixi (AM), onde acontece a pavimentação da BR-319 e Pirititi (RR), por onde pode passar o Linhão de Tucuruí, podem ser cenário de um novo genocídio ultimado pelo Estado brasileiro

Publicada em: 09/12/2021 às 16:26

As Terras Indígenas Jacareúba-Katawixi (AM)[/u] e Pirititi (RR) estão sofrendo uma ofensiva de destruição devido a dois grandes projetos de desenvolvimento herdados da ditadura militar: a pavimentação da BR-319 e a retomada do Linhão de Tucuruí, como aponta o relatório técnico produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA). Apesar dos projetos ainda não terem saído do papel, somente o pronunciamento da possibilidade da implementação já ativaram recentes invasões e desmatamentos nas duas terras indígenas com a presença de isolados.

Agregado a isso, os mecanismos legais que garantem a restrição dos territórios já começaram a vencer: A portaria decretada para a terra indígena de Pirititi, que venceu no dia 05/12, foi renovada e publicada hoje (9), mas por apenas seis meses, tempo insuficiente para garantir a proteção efetiva da área. A portaria que protege a TI Jacareúba/Katawixi, vence no próximo domingo, dia 12. A Fundação Nacional do Índio (Funai), por sua vez, não publicou nenhum pronunciamento se vai ou não garantir a proteção desses territórios e de seus povos, o que pode incentivar outras invasões, já que as Tis ficariam no limbo jurídico.

O relatório do ISA comprova que as invasões e desmatamentos aumentaram nos momentos mais críticos da pandemia e seguem avançando exponencialmente. Este aumento também coincide com o período que antecede o término da vigência das Portarias de Restrição de Uso, mecanismos de proteção legal de grupos de indígenas isolados emitidos pela Funai, fruto da ausência de operações de fiscalização, bem como da expectativa e especulação dos invasores sobre a não renovação das Portarias.

O desmatamento e a atividade de madeireiros ilegais, encorajados pela possível efetivação de obras de infraestrutura, já oferecem risco à segurança física e alimentar dos grupos. Além disso, a aproximação de não indígenas, aumenta a vulnerabilidade dos isolados e pode mudar radicalmente a paisagem ocupada tradicionalmente por esses povos.

O sistema de monitoramento do desmatamento, utilizado como análise no relatório, demonstra que a degradação aumenta ao passo que se aproxima da área de influência dos dois projetos de infraestrutura, impulsionando a exploração ilegal de recursos naturais nas duas Terras Indígenas. As ações dos invasores são proibidas pelas determinações das Portarias de Restrição de Uso, que impedem qualquer atividade de não-indígenas dentro do Território.

Os dados recentes de desmatamento na Amazônia divulgados pelo INPE, também revelam outro indicador de como os crimes em Terras Indígenas com a presença de povos isolados correm sob conivência do Estado, o desmatamento nesses territórios cresceu 245% no atual governo, entre 2020 e 2021.

“Sem as renovações das portarias que garantem a proteção dos territórios, os invasores podem se sentir mais autorizados a ocupar as Tis”, enfatiza Antonio Oviedo, Coordenador do programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA.

Frente à situação emergencial, verificada também nas terras com isolados Piripkura (MT) e Ituna-Itatá (PA), um coletivo de organizações indígenas e indigenistas encabeçado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e pelo Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), lançou em agosto a campanha “Isolados ou Dizimados”[/url], que conta com uma petição para pressionar as autoridades a agir para proteger as quatro terras com registros de isolados.

A campanha visa pressionar a Funai, por meio de uma petição, a garantir o direito ao isolamento e a de vida aos povos isolados, algo já referendado na constituição de 1988, mas distante das prioridades na gestão de Bolsonaro.

Pirititi em risco

Em Roraima, um estado que já protagoniza diferentes conflitos fundiários relacionados à presença de garimpeiros e outros invasores em territórios indígenas, sofre outro perigo: a iminência da construção, no sul do estado, do Linhão de Tucuruí. A linha de transmissão pode ser implementada ao longo do eixo da BR-174, que corta a TI Waimiri-Atroari em 125 km, e afeta uma área de influência da TI Pirititi.

A implementação da obra consiste na construção de torres gigantescas a uma distância segura em relação à estrada, implicando em novos desmatamentos ao longo de todo o trecho rodoviário e dificultando a conexão entre as partes do território separadas pela estrada e todos os processos ecológicos envolvidos.

A Terra Indígena Pirititi faz limite e tem alta conectividade com a TI Waimiri-Atroari (RR), localizada no município de Rorainópolis. A Funai classificou essa TI com um registro “confirmado”, que comprova a existência de um povo indígena em isolamento e desde 2012 a TI tem uma portaria de restrição, renovada seguidas vezes, que garante a proteção do território.

Contudo, esse mecanismo que protege a TI Pirititi caducou no último dia 5 de dezembro e, até o momento, a Funai não se pronunciou se vai garantir o direito ao território para esses indígenas isolados. Essa omissão do órgão sob o direito de isolamento e, ainda, atrelado a proposta de concretizar, a todo custo o Linhão, pode aumentar as tensões e invasores no território.

Em 2021, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) em que expediu recomendações para proteger o povo indígena isolado Pirititi, visando a demarcação da TI e a determinação de ações de combate às infrações ambientais. Mas até agora nada foi feito.

A ação relata que a existência dos Pirititi é ameaçada pelo avanço de madeireiros e grileiros. Em 2018, o Ibama promoveu a maior apreensão de madeira ilegal da história de Roraima (7.387 toras, equivalentes a 15.000 m³), na região dos Pirititi. E nos últimos dois anos, o sistema de monitoramento independente do Instituto Socioambiental (SIRAD) vem detectando invasões e pequenos desmatamentos no interior da TI.

Apesar das evidências de invasões e desmatamentos na TI, os procedimentos para formalização da demarcação da área jamais foram iniciados. Devido à demora em regularizar a área, a ACP pede a realização da demarcação num prazo de três anos.

Linhão de Tucuruí
Em setembro, a [/url]Associação Comunidade Waimiri Atroari (ACWA)[/url] lançou uma nota repudiando o anúncio feito pelo Governo Federal sobre o [/url]início das obras do Linhão Tucuruí[/url]. Leiloada há 10 anos, a linha de transmissão estava com as obras paralisadas e esperava a resolução do Ibama para atravessar o território indígena.

A emissão da licença ambiental de instalação veio depois que a Funai autorizou a obra. Entretanto, o povo Waimiri-Atroari afirma que o acordo compensatório não foi firmado e que, por essa razão, não aceitarão a construção do empreendimento dentro dos limites da TI.

Segundo um estudo realizado pelo ISA e a UFMG, em um cenário de baixa governança ambiental das políticas de comando e controle, e licenciamento ambiental, a TI Pirititi poderá acumular um desmatamento de 5.049 hectares entre os anos de 2022 a 2039.

Jacareúba-Katawixi na margem da estrada
A rodovia BR-319, que liga Rondônia à Amazônia central, segue à margem da TI Jacareúba-Katawixi e tem alto potencial de estimular o desmatamento na região, uma vez que propiciará acesso a vastas áreas da floresta amazônica, que hoje ainda estão preservadas graças à existência dos povos indígenas que habitam a região.

Essa região, localizada nos municípios de Canutama e Lábrea, no estado do Amazonas, é habitada por um grupo de indígenas isolados denominados Katawixi. A “descoberta” da presença dos indígenas isolados aconteceu durante o planejamento das obras das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, quando a Funai alertou o Ibama para a existência de vestígios dessas populações.

Por isso, em 2007, estabeleceu-se a primeira portaria de restrição de uso, que foi sendo renovada sucessivamente, com prazo de validade entre um e quatro anos. A última portaria é 2018 e expirará no próximo domingo.

No estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), analisou-se os possíveis impactos da pavimentação da BR-319 por meio do modelo “SimAmazonia”, que integra variáveis do meio físico, infraestrutura, dinâmica demográfica, ordenamento territorial e governança ambiental para simular o desmatamento.

A pavimentação, segundo projeção apontada pelo relatório do ISA, pode incidir no aumento expressivo do desmatamento, atingindo 9,4 mil km² por ano em 2050 no estado, taxa similar à verificada no ano de 2019 para toda a Amazônia Legal, quando se verificou uma alta de 34,4% em relação ao ano anterior.

Em um cenário de baixa governança ambiental das políticas de comando e controle, e licenciamento ambiental, os impactos da BR-319 podem acarretar novos desmatamentos na TI Jacareúba-Katawixi, podendo degradar 269.974 hectares entre os anos de 2022 a 2039 no interior da TI.

Proteção dos isolados
No fim de novembro, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), lançou manifesto em defesa da vida dos povos indígenas “isolados”, apontando principais ameaças à vida dessas populações na Amazônia.

No manifesto foi destacado que os crescentes ataques e pressões sobre os territórios estão ligados ao gradual enfraquecimento da política indigenista da Funai e do fortalecimento da pauta governamental anti-indígena.

“O ano inteiro [2021], a Funai só falou sobre etnodesenvolvimento e não falou sobre a proteção dos territórios. Privilegiaram esse tema em detrimento da regularização fundiária e da homologação. Além desproteger terra indígena e dar posse ilegal ao invasor”, enfatiza Luciano Pohl, da Gerência de Povos Indígenas Isolados e Recente Contato da Coiab.

Frente aos retrocessos de proteção por via dos órgãos de estado, o movimento indígena está fortalecendo estratégias para conter as invasões nas TIs, com monitoramento e ações de proteção autônomas no território, a fim de proteger os seus “parentes isolados”, como denominam.

“Estamos aperfeiçoando cada vez mais nossas iniciativas autônomas e nossas estratégias para a proteção de nossos territórios, e para o bem viver dos povos indígenas isolados. Dessa forma, reforçamos que continuaremos vigilantes em defesa de nossos direitos” diz trecho da carta.[/i]
Por: Tainá Aragão (ISA)e