Organizações indígenas são contra a construção de ferrovia EF-170 na Amazônia, que não respeita protocolo de consulta dos povos indígenas

Para a Fepipa, a Fepoimt e a Coiab, a aprovação da construção da ferrovia EF-170, a Ferrogrão, é uma sinalização de que o pacto global com o clima não tem seriedade

Publicada em: 01/06/2023 às 01:00

O avanço do agronegócio sobre as comunidades indígenas se manifesta de diversas formas. Neste dia 31, foi posta em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) o processo relativo à ferrovia EF-170, conhecida como Ferrogrão, cujo traçado corta uma Unidade de Conservação Integral (UCI), o Parque Nacional do Jamanxim. Em 2017, essa UCI teve sua área reduzida em mais de 800 hectares, por meio de medida provisória, vetada ontem. Por outro lado, o ministro Alexandre de Moraes autorizou o retorno dos estudos.

No entanto, há procedimentos do licenciamento desta obra que não estão sendo levados em conta. Os impactos socioambientais foram desconsiderados e o direito à consulta dos povos afetados, violado. É o caso dos indígenas Munduruku aos quais não foi oferecido um processo de consulta nos termos do que prevê a legislação vigente. O povo Munduruku publicou o seu protocolo de consulta livre, prévia e informada em 2014, e em um dos dos trechos aponta que “o governo não pode nos consultar apenas quando já tiver tomado uma decisão. A consulta deve ser antes de tudo. Todas as reuniões devem ser em nosso território – na aldeia que nós escolhermos –, e não na cidade, nem mesmo em Jacareacanga ou Itaituba”.

Segundo Ewésh Yawalapiti Waurá, advogado indígena da Associação da Terra Indígena Xingu (Atix)/Fepoimt, a Agência Nacional de Transportes Terrestre (ANTT) alega que os Kayapó estão fora da área de impacto da ferrovia. Assim, a ANTT incluiu nos estudos apenas dois povos, os Munduruku e os Panará. A Coiab teve acesso a relatos de outros territórios que serão impactados, incluindo o território Xipaya, no estado do Pará.

“Identificamos que nesse processo houve a falta de consulta aos povos que serão impactados nesta região. Em 2017, os Kayapó tiveram uma audiência pública com a ANTT, e nessa audiência o presidente da agência, fez um acordo que previa que o processo não teria andamento sem consulta aos povos afetados. A própria ANTT vem descumprindo esse acordo. E é isso que estamos questionando, na verdade”, afirma Ewésh.

As lideranças ressaltam que, até o momento, o protocolo não foi cumprido, visto que foram realizadas tão somente duas audiências públicas, número insuficiente para suprir os requisitos mínimos necessários de um processo de consulta adequado aos termos da autodeterminação dos povos. A liderança Alessandra Korap Munduruku reforça que o protocolo de consulta deve ser respeitado e que quando um projeto afeta todos os indígenas, a decisão deve ser coletiva.

O direito à consulta livre, prévia e informada é garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Estado brasileiro é signatário. Ele prevê a consulta aos povos “interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”.

A obra é defendida principalmente por ruralistas, pecuaristas e monocultores, grande parte do que chamamos comumente de agronegócio. Os representantes desses setores, que serão diretamente beneficiados se a Ferrogrão for construída, tentam vender a ideia de que se trata de mais um empreendimento de grande importância para o desenvolvimento do país e que isto, por si só, justificaria todos os impactos ambientais irreversíveis que poderia causar.

Porém, é preciso mencionar que a produção a partir das monoculturas beneficiam apenas os empresários do agronegócio, porque das 115 milhões de toneladas colhidas em 2017, 78% foram exportados para a China. Além disso, os grandes produtores recebem verba de apoio do Plano Safra para produção de commodities e outros financiamentos, o que pressiona cada vez mais os pequenos agricultores.

De acordo com informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 70% dos alimentos consumidos na mesa do povo brasileiro são provenientes da agricultura familiar. Essa estatística refere-se aos esforços de pequenos agricultores que cultivam diversos produtos essenciais, como mandioca, feijão, arroz, milho, leite e batata. Isso significa que a maioria dos alimentos consumidos no país é produzida por agricultores familiares. Esses dados destacam a relevância dos pequenos produtores na diversidade das ofertas de alimentos.

Já a monocultura agrícola promovida pelos grandes poderosos do agronegócio, que envolve o cultivo de apenas uma espécie em grandes áreas, traz diversos prejuízos que impactam direta e negativamente as mudanças climáticas e favorecem o racismo ambiental. Ela contribui para emissões de gases de efeito estufa, perda de biodiversidade, erosão do solo, consumo excessivo de água e redução da resiliência climática. Para proteger nosso planeta, é essencial apoiar práticas agrícolas sustentáveis e diversificadas, que promovam a biodiversidade e ajudem a enfrentar os desafios do desequilíbrio climático.

Além de considerar, avaliar e estimar preventivamente todos os impactos negativos que a Ferrogão causará se construída, reforçamos a necessidade de respeito a todos os procedimentos legais que o antecedem, inclusive os processos de discussão e consulta junto e aos povos diretamente afetados. Marcilene Guajajara, coordenadora da Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima), é da Terra Indígena Caru, no norte do Maranhão, que está na área de impacto da Estrada de Ferro Carajás.

Os relatos da repercussão negativa no território vão desde os impactos socioambientais e culturais, como a poluição sonora e do ar; o aumento da insegurança alimentar pelo afugentamento de caça; aumento da frequência de circulação de pessoas estranhas nos entornos e até dentro do território, causando um verdadeiro estado de insegurança jurídica para a população indígena local, composta, inclusive, por indígenas em isolamento voluntário.

“A comunidade não dorme mais de tanto barulho. Ainda tem a manutenção da estrada, que desmata tudo. A caça também está ficando mais longe. Esse ano, acredito que por tanta fumaça e pó de minério, a água do rio encheu e ficou com uma cor muito diferente. O nosso território aqui na Caru é compartilhado com o povo indígena isolado e recente contato, os Awa, que são muito mais impactados com essa proximidade da ferrovia. E mesmo com compensação, isso não compensa a quantidade de impactos ambientais, culturais, sociais”, afirma a liderança.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6553, movida pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), tem como relator o ministro Alexandre de Moraes. O partido levanta questionamentos em relação à Lei 13.452/2017, a qual resultou na exclusão de aproximadamente 862 hectares do Parque Nacional do Jamanxim, localizado no estado do Pará. O relator acatou uma medida cautelar para suspender os efeitos da referida lei, fundamentando que a modificação do território de uma unidade de conservação não deveria ter sido realizada por meio de medida provisória.

Sustenta-se, ainda, no bojo da referida ação, que a alteração e supressão de áreas das unidades de conservação requerem a aprovação de uma lei formal. Segundo o partido, o Parque Nacional do Jamanxim, localizado nos Municípios de Itaituba e Trairão, no Pará, é considerado um patrimônio cultural imaterial. Portanto, a modificação de seus limites, com a destinação da área suprimida aos leitos e faixas de domínio da Ferrogrão e da BR-163 por meio de uma medida provisória, violaria as normas constitucionais de proteção ao patrimônio cultural (artigo 216). Além disso, essa alteração afetará direta e indiretamente os povos indígenas da região, violando assim direitos fundamentais nos termos do artigo 231 da Constituição Federal.

Portanto, devido a todas as experiências negativas que os povos indígenas possuem em relação à grandes empreendimentos na Amazônia, as lideranças e organizações indígenas requerem que os marcos legais de consulta sejam realizados da forma correta. Essa pauta não dialoga apenas com os povos do Mato Grosso e Pará, mas pode acarretar um efeito tsunami de propostas de grandes empreendimentos em nossos territórios.

Para a Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), a Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a posição do governo de reforçar que esse empreendimento gera sustentabilidade é uma falácia, pois o Banco Mundial, por exemplo, estima que o desmatamento faz o Brasil perder mais de US$ 317 bilhões, sendo necessário que a atual gestão entenda que menos impacto ambiental e floresta em pé gera sustentabilidade real e renda. Os famosos empreendimentos de baixo carbono são as iniciativas populares.