NOTA PÚBLICA: Omissões e inverdades: a extinção de Ituna-Itatá é um grave crime contra a humanidade

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Publicada em: 28/01/2022 às 00:00

É a primeira vez na história da política indigenista voltada à proteção dos povos indígenas isolados – instituída em 1987 – que a Funai emite comunicado oficial atestando, sem condições de exatidão, a inexistência de indígenas isolados em determinado território. Ontem, em nota para a imprensa sobre a Terra Indígena Ituna-Itatá, afirmou que “(…) não foram localizados nem identificados grupos em isolamento no local.”, por isso concluiu “(…) que não há elementos que justifiquem a edição de uma nova portaria de interdição da área”. Isso é gravíssimo.

Hoje bem cedo o jornalista Rubens Valente escancarou a relação ardilosa entre a cúpula da Funai e o senador ruralista do Pará, pré-candidato ao governo do estado do Pará, Zequinha Marinho. Conhecido como o principal interessado no fim da Restrição de Uso que protege Ituna-Itatá, o senador teve acesso ao relatório confidencial da expedição da Funai, realizada no segundo semestre de 2021, que encontrou vestígios da presença de indígenas isolados na região. Isso significa dizer que, agora, há que se atentar não apenas para a vida dos isolados, que está em risco, mas também, à garantia de que não haja represálias aos membros da equipe expedicionária da Funai que constatou a presença dos indígenas na região.

A Restrição de Uso da Terra Indígena Ituna-Itatá está sendo extinta com base em uma avaliação parcial, omissa e que não condiz com a realidade da presença de indígenas na região. Ou seja, a política para povos indígenas isolados que estava sendo consolidada nas últimas décadas, inclusive como modelo para outros países, é, agora, um grande exemplo de retrocesso da política indigenista. A Funai, alinhada aos interesses dos setores ruralistas, ao não renovar a portaria de Restrição de Uso entrega o território indígena à sanha do crime ambiental e à lógica arcaica e genocida de transformação de territórios indígenas em capital político e oportunidades econômicas/financeiras.

Vamos a alguns rápidos pontos:

1 – A manifestação da Funai para imprensa omite o fato de que as equipes especializadas, por ela citadas, inclusive a equipe que esteve na terra indígena em 2021, apontaram evidências da presença indígena, bem como recomendaram a manutenção da Restrição de Uso.
2 – A Funai omite o fato de a área estar sofrendo desmatamentos recordes nos últimos anos, o que, obviamente, dificulta a identificação de vestígios. Em contextos de ameaça e pressão os indígenas isolados costumam camuflar ainda mais os indícios de sua presença, num processo constante de fuga e sobrevivência.

3 – A Funai omite a existência de extenso acervo documental que, desde a década de 1970, aponta para essa presença. No acervo há dados coletados em expedições, em sobrevoos e relatos de outros indígenas que vivem na região. Sob o ponto de vista técnico, esse acervo conforma um conjunto coerente de informações que indicam fortemente a presença indígena.

4 – Estaremos atentos à eventuais represálias e perseguições aos técnicos da Fundação comprometidos com a proteção dos povos indígenas isolados, notadamente, àqueles que realizaram a expedição do segundo semestre de 2021, ocasião em que observaram evidências da presença indígena, bem como recomendaram a manutenção da Restrição de Uso em seu relatório técnico, contrariando o escuso interesse para extinção da área.

5 – Até o momento não há dados capazes de provar que não há, ou que não houve a presença indígena em períodos recentes no interior da área. Em tese, para extinguir uma área em Restrição de Uso, deve-se provar de forma irrefutável e definitiva a ausência de indígenas isolados, o que não ocorreu.

6 – A TI Ituna-Itatá foi interditada pela primeira vez em 2011. Foram pouco mais de uma dezena de expedições de campo realizadas ao longo dos 10 anos de vigência da Restrição de Uso, ocasiões em que foram localizados indícios que apontam a presença, não a ausência de indígenas isolados. A despeito das dificuldades estruturais da Funai em realizar pesquisas mais intensas e sistemáticas de campo, como seria recomendado, a metodologia de trabalho tende à morosidade, pois deve ser criteriosa, demanda tempo e ações intensas de campo, bem como necessita de condições propícias de trabalho, como segurança para as equipes expedicionárias. Vale lembrar que em determinados períodos ao longo desses 10 anos, as equipes foram ameaçadas de morte por grileiros da área. Inquéritos abertos na Polícia Federal provam isso.

7 – O fato de parte da área estar antropizada – inclusive com desmatamento realizado após o início da Restrição de Uso, especialmente entre 2018 e 2022; não indica necessariamente a ausência de indígenas. Como ocorre em outras regiões – na TI Awá, no Maranhão, por exemplo – há forte possibilidade dos indígenas estarem presentes de forma furtiva; ou de retornarem às mesmas áreas após uma eventual retirada total dos invasores. Portanto, frise-se, o desmatamento não pode ser utilizado como critério definidor da não presença indígena, de nenhum modo. Utilizar esse critério é anistiar os crimes ambientais cometidos na área e possibilitar o extermínio de um grupo isolado.

8 – Não deixa de ser curioso observar que, embora a Funai diga que não há presença indígena em Ituna-Itatá, cogita que haja nas terras indígenas contíguas a ela, notadamente as terras indígenas Koatinemo e Trincheira Bacajá.. Ora, por que cogita-se a presença indígena nessas áreas e não em Ituna-Itatá? É uma gritante e perigosa contradição técnica, que não só viola direitos constitucionalmente estabelecidos aos povos indígenas sobre suas terras – e aí lembramos dos princípios da ocupação tradicional e da intangibilidade e integralidade territorial – quanto um risco real à sobrevivência de indígenas isolados na região.

9 – Diante de informações inconclusivas a presença indígena deve ser considerada e, portanto, a Restrição de Uso mantida. Trata-se do princípio da precaução, regente dessa política e contemplado em normativas nacionais e internacionais – NÃO HÁ ELEMENTOS SUFICIENTES QUE PERMITAM ATESTAR A INEXISTÊNCIA INDÍGENA, pelo contrário. Não se pode prescindir do princípio de precaução em casos como esse, com vistas à evitar a repetição de processos de genocídio (tal como os inúmeros casos que ocorreram na história recente) sob o manto invisível imposto por esse tipo de prática parcial, ideológica e sectária que vemos na “Nova Funai”.

10 – Por tudo isso é que recebemos com muita esperança a decisão da Justiça Federal da 1ª Região em Altamira (de 26/01/2022), no âmbito de uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em Altamira, determinando à Funai um prazo de 48 horas para a publicação de Portaria de prorrogação da Restrição de Uso da Terra Indígena Ituna-Itatá.

11 – Por tudo quanto vem sendo exposto, a nossa conclusão, a partir dos documentos que estão vindo à tona pela imprensa, é a de conivência da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai, que deveria primar pelo rigor técnico da metodologia para reconhecimento da presença de indígenas isolados e se opor frontalmente ao desmonte dessa política.

12 – Pela imperícia, e pela falta de lastro com a realidade , consideramos que a extinção da Terra Indígena Ituna-Itatá é uma execução sumária e coletiva dos indígenas isolados que vivem na região, que seguem, possivelmente, em constante fuga no que ainda resta de seus territórios. Repudiamos toda e qualquer negociação política que esteja sendo feita com esse território. Para nós, o fim da terra indígena Ituna-Itatá é um grave crime contra a humanidade.

Amazônia, Brasil, 28 de janeiro de 2022.
Coiab – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
Opi – Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato