A 24ª sessão do Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas, que encerra nesta semana, teve uma fala categórica do secretário-geral da ONU, António Guterres: “Os direitos individuais e coletivos dos povos indígenas são inegociáveis”. A declaração ecoa a luta do movimento indígena brasileiro, que há décadas atua para que os direitos fundamentais dos povos indígenas, estabelecidos na Constituição de 1988, sejam respeitados diante de graves ameaças como a lei do Marco Temporal e as tentativas de exploração de minérios nos territórios, por exemplo.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) integra a luta pela garantia dos direitos indígenas, atuando pela demarcação dos territórios e proteção a seus modos de vida e culturas. A organização foi amicus curiae no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que discutiu o Marco Temporal. A tese foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2023, uma verdadeira vitória para os povos indígenas. No entanto, naquele mesmo ano, o Congresso Nacional promulgou a Lei 14.701, estabelecendo o Marco Temporal, um atropelo à decisão do STF e à própria Constituição. A Coiab ingressou como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7582 e conexas, requerendo a inconstitucionalidade da lei.
Outra tentativa de negociação dos direitos indígenas foi a comissão especial instituída pelo ministro do STF Gilmar Mendes para tratar das ações relacionadas à Lei 14.701, com início em agosto de 2024. Na primeira reunião da ‘câmara de conciliação’, a coordenadora da Assessoria Jurídica da Coiab, Kari Guajajara, denunciou a falta de representação e escuta das vozes dos povos indígenas no processo. A Apib retirou-se da conciliação, uma vez que a discussão colocava os direitos indígenas em negociação, inclusive propondo a regulação da exploração de minérios em terras indígenas.
O dispositivo continuou os trabalhos sem a participação das organizações indígenas, e continua sendo prorrogada com adiamentos sucessivos a pedido da própria União, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Consequência direta desse processo é o fato da Lei 14.701/2023 permanecer em vigor, mesmo violando diretamente a Constituição Federal, promovendo impactos que podem ser irreversíveis aos povos e aos territórios.
Desde 2024, cinco Relatorias Especiais das Nações Unidas se manifestaram firmemente contra o Marco Temporal e com ressalvas à câmara de conciliação comandada por Gilmar Mendes.
“Ataques aos povos indígenas visando nossa fragilização para usurpação dos nossos territórios é estratégia já conhecida no Brasil. A comissão de conciliação no STF, o GT do Senado e em certa medida a omissão do Poder Executivo são apenas reconfigurações desse processo sistemático que tem custado não só as vidas indígenas, mas também nossos territórios e a própria humanidade, considerando que estes exercem um papel elementar no processo de enfrentamento e mitigação das mudanças climáticas”, afirma Kari Guajajara.

Coiab entrega recomendações à 24ª Sessão do Fórum da ONU sobre Questões Indígenas. Foto: Divulgação
Ameaça da mineração
António Guterres fez um alerta sobre a ameaça da mineração em terras indígenas, citando como exemplo a poluição por mercúrio causada pela mineração ilegal, que acaba envenenando a água e alimentos. Guterres classificou a ameaça como “iminente e crescente”, uma vez que grande parte dos minérios encontra-se em terras indígenas ou próximo a elas. A corrida pela exploração predatória gera casos de desapropriação, exclusão e marginalização das populações indígenas, além dos graves riscos à saúde.
Dois dias após o discurso do secretário-geral da ONU, o presidente do Senado Federal, David Alcolumbre (União-AP) anunciou a criação de um grupo de trabalho para elaborar uma lei visando regulamentar a atividade de mineração em terras indígenas, proposta pelo presidente do Senado. Esse projeto ignora os diversos riscos socioambientais associados à exploração de minérios, como exemplificado pela crise humanitária da Terra Indígena Yanomami, que expôs as consequências da mineração e desmatamento ilegais. Isso sem falar que esta iniciativa, sem o consentimento das comunidades afetadas, viola o direito à autodeterminação e à consulta prévia, livre e informada prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. A Coiab se manifestou contra esta manobra que visa, mais uma vez, atropelar os direitos dos povos indígenas.
Na ONU, Alessandra Munduruku alertou sobre a contaminação dos corpos indígenas, especialmente das mulheres grávidas e, por consequência, toda uma geração que passa a carregar nos seus corpos as consequências do mercúrio. “Eu venho da minha aldeia para dizer aqui que as nossas mulheres na Amazônia têm o útero doente, o leite materno está contaminado com ouro e mercúrio. Um estudo da Fiocruz constatou que 56% das mulheres e crianças de Maturuka, na Amazônia, estavam contaminadas; não é um problema exclusivo do povo Munduruku. Indígenas, pescadores e até mesmo aqueles que vivem nas cidades também estão adoecendo. Esses minerais saem para enriquecer ainda mais os homens ricos”, denunciou a liderança do Pará.
Mudanças climáticas
A contribuição dos povos indígenas para o enfrentamento da crise climática também foi abordado no discurso de Guterres. “Os povos indígenas estão na linha de frente da mudança climática, da poluição e da perda de biodiversidade, apesar de não terem feito nada para criar essas crises e tudo para tentar impedi-las”, disse o secretário-geral da ONU.
Ele ainda reconheceu o papel dos povos indígenas como guardiões da biodiversidade e do meio ambiente, citando os conhecimentos e práticas tradicionais como modelo de conservação e uso sustentável dos recursos naturais.
A autoridade climática dos povos indígenas é algo que a Coiab tem fortalecido por meio de uma série de estratégias de incidência no âmbito nacional e internacional. Com a realização da COP30 na Amazônia este ano, a Coiab lançou a campanha “A Resposta Somos Nós”, um chamado global por justiça climática, com protagonismo dos povos indígenas. Outra iniciativa foi a articulação do G9 da Amazônia Indígena, com lideranças dos nove países da Bacia Amazônica, para incidir em discussões globais sobre clima e biodiversidade.
Durante o Acampamento Terra Livre (ATL) deste ano, a Coiab, junto ao G9 e lideranças indígenas do Pacífico e Austrália, fizeram uma declaração com um chamado ético urgente em resposta à crise climática. Os povos indígenas alertaram que a COP30 na Amazônia deve ser o símbolo de virada nas negociações e mobilização climáticas. Entre as demandas, destaca-se a autoridade das lideranças indígenas com voz e poder iguais aos Chefes de Estado e o financiamento direto aos povos indígenas, assim como a compensação por danos climáticos sofridos por esses povos.
Essas demandas também são refletidas no discurso de Guterres na abertura do Fórum: ele propôs o reconhecimento pelos países das lideranças e direitos indígenas e o aumento de financiamento para essas populações, entre outras medidas de fortalecimento da participação dos povos indígenas na ONU.
“Isso confirma, mais uma vez, que a luta pelos direitos indígenas não é uma luta isolada, mas sim global, que reverbera por diversos espaços e exige a cada dia mais atenção da sociedade. Sem povos indígenas, não há Amazônia; sem Amazônia, não há equilíbrio climático. Sem equilíbrio climático, não há futuro”, disse o coordenador-geral da Coiab, Toya Manchineri.