Carta da FEPIPA de apoio à legítima mobilização indígena do Povo Kayapó

Publicada em: 20/08/2020 às 18:06

O povo Kayapó-Menkrãgnoti das Terras Indígenas Baú e Menkragnoti, no sul do Pará, é um dos mais de 55 povos indígenas do estado. Formado por mais de 1.600 pessoas, são 297 famílias que moram em doze aldeias e que estão preocupadas com o constante descumprimento das leis brasileiras na região onde vivem. E essa situação não começou agora, mas está piorando muito! O governo, que deveria ser o primeiro a garantir o cumprimento das leis, tem atropelado as leis, a ordem e até mesmo o progresso – se entendemos por progresso o direito coletivo a uma vida justa, digna e pacífica, porque fora disso só há a barbárie. Em um momento de pandemia como estamos vivendo, a gravidade dessa atitude reflete-se não somente na corrupção da justiça e da dignidade, mas nos graves riscos à saúde e à vida de todos os brasileiros. Por isso, a FEPIPA – Federação dos Povos indígenas do Pará , que articula e congrega mais de 55 povos indígenas neste estado, presentes em 52 municípios e protetores de florestas e rios em mais de 25% do território paraense, base da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB , vem se somar ao protesto e pedir seu apoio à carta aberta e mobilização legítima do povo Kayapó-Menkrãgnoti . O QUE ESTÁ ACONTECENDO? O povo Kayapó-Menkrãgnoti se viu obrigado a bloquear, às 7h da segunda-feira (17/08), um trecho da BR-163, o km 302 da rodovia que liga Cuiabá a Santarém, para que as leis determinadas pelos próprios kuben (não-indígenas) sejam cumpridas. Para iniciar as negociações, o povo Kayapó demanda a presença de autoridades do Ministério da Saúde, da Funai e do DNIT, além do governador do Pará, Helder Barbalho. Os Kayapó cobram apoio para o enfrentamento da pandemia de Covid-19 , como a conclusão da construção da Casa de Saúde Indígena em Novo Progresso (PA), parada desde 2016, além de dívidas da Funai em forma de repasses e a renovação do Plano Básico Ambiental (PBA) da rodovia e, finalmente, ações para expulsar madeireiros e garimpeiros ilegais das duas TIs, que constantemente violam as lei brasileiras e ameaçam sua integridade física e de seus territórios. Por isso, é preciso deixar claro que os Kayapó querem garantir não somente seus direitos (que estão determinados por lei, vale dizer novamente), mas querem também garantir o direito constitucional de todos os brasileiros ao meio ambiente ecologicamente equilibrado . Os Kayapó parecem ter compreendido muito mais claramente do que o próprio governo, que jurou cumprir e defender a constituição em sua cerimônia de posse, que o meio ambiente é “ bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida ”, como define o Art. 225 da Carta Magna. ONDE ESTÁ ACONTECENDO? Os Territórios protegidos e defendidos pelos Kayapó, muitas vezes com a própria vida, somam mais de 6 milhões de hectares e são a última floresta contínua da Amazônia Oriental, numa região conhecida por desmatamento e garimpo ilegal. Foi exatamente nesse área que foram presos dois dos piores grileiros do país, os “ grileiros dos Jardins ”, no maior desmatamento já encontrado pelo IBAMA e feito por um só infrator ambiental na Amazônia: 14 mil hectares. Do outro lado, o garimpo de Esperança IV já foi embargado e multado em R$ 50 milhões, também pelo IBAMA, por uso irregular de mercúrio . Essas são ameaças ao nosso patrimônio! E os Kayapó defendem esses territórios também porque sabem que essa é uma obrigação constitucional de todos nós, pois se impõe duplamente “ ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações ”, como completa o mesmo Art. 225. Por isso, os Kayapó prometem resistir e até mesmo alguns sindicatos locais de caminhoneiros demonstraram seu apoio aos protestos e reivindicações. O dever de defender o meio ambiente é ainda mais evidente se nos lembrarmos de que o município de Novo Progresso (PA), onde está localizado o bloqueio dos Kayapó, foi palco do chamado “dia do fogo”, em 10 de agosto de 2019, evento que chocou o mundo e foi organizado por fazendeiros, empresários, advogados e pessoas ligadas ao setor agropecuário da região – sem que ninguém tenha sido preso . Ainda hoje, ele está entre os 10 municípios brasileiros com mais focos de calor em 2020, segundo dados do INPE. Portanto viemos reafirmar que não aceitaremos nenhum retrocesso de nossos direitos, conquistados pelo sangue de nossas lideranças, para incluir o respeito a nossas vidas e territórios enquanto povos originários desse país. Lutaremos de forma unida e resistente pelos territórios e pelas vidas de todos. INFORME-SE, PARA NÃO CAIR EM “FAKE NEWS”:

  • Sobre o enfrentamento da pandemia de Covid-19 pelos Kayapó : a construção de uma Casa de Saúde Indígena em Novo Progresso (PA) foi combinada em 2016 (e esse acordo só veio depois de os Kayapó terem fechado, outra vez, a BR-163). Na época, o governo federal fez a mediação e o presidente da Funai foi à rodovia. As obras foram assumidas pela prefeitura de Novo Progresso e nunca foram concluídas. Mas agora estamos em plena pandemia, e o único ponto de tratamento e acolhimento de saúde para os Kayapó tem goteiras, problemas estruturais e foi construída sem o poço artesiano, ou seja, falta água constantemente em meio à pandemia. Para todos os 1.200 Kayapós da região, hoje em dia há apenas 1 médico e os testes rápidos de Covid-19 só chegaram em junho. Oficialmente, 403 indígenas já foram infectados e 4 morreram – todos anciãos. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) não tem sequer motorista para a remoção de doentes das aldeias nem contrato de manutenção dos carros. Os Kayapó vivem uma dupla pandemia, de saúde e de infraestrutura!
  • Sobre o Plano Básico Ambiental (PBA) de que falam os Kayapó : o PBA dá direito aos Kayapó da TI Mekrãgnoti de receber recursos do governo para compensação de impactos decorrentes da rodovia BR-163 e foi uma das condicionantes legais para a concessão do licenciamento ambiental da obra. É esse plano que tem financiado, nos últimos 10 anos, todo o trabalho de monitoramento da floresta, com o uso de imagens de satélite e bases de vigilância, não só para os indígenas, mas para o próprio governo . Os valores devidos em 2019 foram pagos somente em abril de 2020 e o acordo de um pagamento emergencial, que deveria cobrir o período de janeiro a junho de 2020, ainda não havia nem sido assinado pelo presidente da Funai até a última sexta-feira (14/08). O PBA é um dever do governo e um direito dos Kayapó!
  • Sobre bloqueios de tráfego em estradas federais : embora os Kayapó saibam que é uma atitude extrema e delicada para todos os envolvidos, e que deve ser utilizada somente quando todas as demais tentativas de diálogo com o governo se mostram ineficientes, eles não são os únicos a utilizar essa forma de ação coletiva, mas são os únicos a sofrer as represálias mais brutais. Os próprios garimpeiros já fecharam a mesma BR-163, em setembro de 2019, mas sua “reivindicação” foi para protestar contra o cumprimento da lei, ou seja, contra as operações do Ibama para reprimir o garimpo ilegal. Mesmo no caso de um protesto absolutamente ilegítimo como esse, o governo “permitiu” o fechamento da mesma estrada por 5 dias, enquanto negociações absurdas acabaram com a promessa de uma reunião entre garimpeiros ilegais e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A reunião, inclusive, já aconteceu em Brasília. No caso do protesto atual, os Kayapó receberam uma liminar em menos de 12 horas, da juíza Sandra Maria Correia da Silva, da Justiça Federal em Itaituba, que determinou a desintrusão em 24 horas pela Polícia Rodoviária Federal e ainda acionou a Polícia Federal para auxiliar na reintegração de posse em até 48 horas. Parece ter pressa a juíza, mas para quê?!
  • O bloqueio é uma forma de protesto legítimo e tem apoio da sociedade : a BR-163 é a principal rota de distribuição agrícola do Centro-Oeste aos portos fluviais da Amazônia. Ela é estratégica para todos, mas os Kayapó sabem que o bloqueio, se for temporário, não seria suficiente para resultar em problemas significativos de oferta de grãos no porto de Miritituba ou no fluxo de produtos para exportação. O próprio diretor-geral da Anec (Associação Nacional dos Exportadores de Cereais), Sérgio Mendes, concordar e disse à FSP que o Brasil está no período de exportação de milho, cuja colheita da segunda safra, a maior do país, já está no final. Assim, a maior parte da soja disponível para exportação já foi embarcada. Além disso, o acordo entre os Kayapó e os caminhoneiros é abrir o tráfego entre 18h e 24h, para reiniciar o bloqueio a partir de zero hora da quarta-feira (19/08), enquanto não houver diálogo e acordo com o governo estadual e federal. A resposta agora depende do governo, não dos Kayapó!
  • Garantia de direitos e de consulta prévia é dever do Estado: o DNIT, responsável pela obra da rodovia e por seus impactos, e o Ministério da Infraestrutura, encarregado pela concessão da BR-163 e pelo projeto da Estrada de Ferro 170, conhecida como Ferrogrão, estão tocando o plano sem que os indígenas tenham sido consultados. Em dezembro de 2017, a ANTT assinou uma ata de compromissos garantindo que o projeto da Ferrogrão não seria encaminhado para o Tribunal de Contas da União (TCU) sem a realização do processo de Consulta, Livre, Prévia e Informada com os Kayapó. Desde fevereiro de 2019, o povo Kayapó-Menkrãgnoti tem seu próprio Protocolo de Consulta , um conjunto de regras legalmente válidas e necessárias para fazer valer seu direito de participar de decisões públicas (legislativa ou administrativa) que dizem respeito a suas vidas, territórios e direitos. Em junho de 2020, no entanto, o governo federal protocolou o Plano de Outorga da ferrovia no TCU sem a realização da prometida consulta. Desde julho de 2020, o plano para concessão da ferrovia está sob análise no TCU. Com tanto desrespeito a direitos fundamentais, você faria diferente?


Vidas indígenas importam!
Nenhuma gota de sangue a mais!

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB
Federação dos Povos Indígenas do Pará – FEPIPA

19 de agosto de 2020.