Artigo | “Não vislumbramos um enfrentamento da crise climática que desconsidere os direitos das populações indígenas”

por Toya Manchineri, coordenador de Territórios e Recursos Naturais da COICA e assessor político da COIAB

Publicada em: 16/03/2021 às 02:00

No Brasil, o dia 16 de março é celebrado como o Dia Nacional da Conscientização sobre as Mudanças Climáticas. A data foi criada para chamar atenção para este assunto, assim como ressaltar a necessidade de ações que reduzam o impacto deste fenômeno e ajudem a mitigar os prejuízos causados pela emissão de gases de efeito estufa.

As Terras Indígenas “guardam” cerca de um terço de todo o carbono existente no bioma amazônico. Por isso, a COIAB publica hoje um artigo sobre o tema assinado pelo Coordenador de Territórios e Recursos Naturais da COICA e Assessor Político da COIAB, Toya Manchineri. Em linhas gerais, ele fala como os povos indígenas veem a crise climática e como os dois assuntos estão relacionados.

O artigo mostra também a importância da demarcação e defesa de Terras Indígenas para a mitigação das mudanças climáticas e de como é preciso considerar os direitos indígenas no enfrentamento desta crise.

Eis o artigo:


“Há quem pense que não: mas a crise climática e os direitos dos povos indígenas estão interligados de diversas maneiras.

A primeira delas consiste no fato de que os povos indígenas já vêm sofrendo, há muito tempo, os efeitos das mudanças climáticas. Não são raros os relatos de parentes que percebem mudanças nos regimes de chuva, na crescente dificuldade de conseguir a caça dentro de nossos territórios tradicionais, na distância cada vez maior para obter itens medicinais.

Já está claro para nós que todos os ecossistemas que, ao longo do tempo, nos deram fartura e abundância estão prejudicados. Muitas aldeias estão cercadas por lavouras; agrotóxicos são despejados em nossas plantações e aldeias, as cabeceiras dos rios são ocupadas e transformadas.

Entendemos que isso tudo é consequência de um modo de ver e lidar com a natureza que não só desequilibra o sistema que nos sustenta; mas faz parte também de uma prática e visão de mundo que ignora e desrespeita os direitos dos povos indígenas. Nossos territórios não estão todos demarcados e, quando o são, não são respeitados. Este é um primeiro aspecto.

Outro ponto que une esses dois temas é o fato de que as Terras Indígenas dão uma enorme contribuição para a redução de dióxido de carbono na atmosfera. Há estudos que mostram que as Terras Indígenas de toda a Amazônia são responsáveis por cerca de um terço do estoque de carbono existente neste bioma – quantidade distribuída por mais de 2,4 milhões de quilômetros quadrados. É um território maior que o Congo e a Indonésia, para ficar apenas em dois países que possuem grandes extensões de floresta.

As Terras Indígenas, são, na prática, enormes repositórios de carbono, por conta dos modos de vida tradicionais de nossos parentes. Essa contribuição, no entanto, ainda não é reconhecida da maneira devida e precisa ser melhor compreendida e avaliada.

A COIAB faz parte de um conjunto de organizações que chama a atenção para as questões que a Ciência traz – que mostram que a crise climática é fruto de ação humana e que precisamos fazer um enorme esforço para descarbonizar a economia e a maneira como vivemos hoje neste planeta.

Do mesmo modo, como organização representativa, a COIAB entende que cada etnia amazônica tem sua própria maneira de ver e explicar esses fenômenos relativos à crise climática e que todos eles devem ser respeitados e acolhidos. Assim, de maneira coletiva e colaborativa, teremos condições de elaborar uma resposta à altura do desafio que enfrentamos.

Consideramos que uma das estratégias mais efetivas para o combate às mudanças climáticas é a demarcação e defesa dos territórios indígenas. As Terras Indígenas da Amazônia estocam o equivalente a um ano de emissões globais de carbono. Então está claro que defender esses territórios significa manter um enorme estoque de carbono na natureza e assim minimizar os impactos causados pelas mudanças climáticas.

Apenas o reconhecimento e demarcação desses territórios, porém, não é suficiente. A COIAB, junto a diversas outras autoridades e lideranças e representações indígenas, vem demandando que as lideranças indígenas tenham maior participação no processo de formulação, decisão e implementação das políticas. Esse é um ponto ainda muito falho no Brasil.

Além disso, de maneira mais ampla, os direitos indígenas ainda precisam ser mais bem garantidos e assegurados. O direito à terra, à segurança alimentar, à gestão dos territórios, tudo isso precisa ser aperfeiçoado. Dessa maneira, nossos irmãos terão bem-estar, qualidade de vida e poderão cuidar melhor de seus povos e seus territórios.

Os indígenas já desempenham diversos papéis nas discussões internacionais que tratam da crise climática. Acreditamos que os povos originários não só testemunham, com base em suas vivências próprias, sobre as mudanças que vem acontecendo em seus territórios, mas também podem ajudar na construção de uma nova maneira de relacionamento com a natureza, que não envolva a exploração predatória dos recursos naturais.

É preciso deixar claro também que não vislumbramos, de maneira alguma, um enfrentamento da crise climática que desconsidere os direitos das populações indígenas e povos originários de todo o mundo. Sem respeitar nossos territórios e vivências, nenhuma solução será prática, efetiva e duradoura – e não dará conta de entregar os resultados que precisamos.

Nossa esperança vem do fato de que, apesar de todos os problemas e dificuldades, nós resistimos. Não é possível negar que, apesar de todos os retrocessos que vivemos e das dificuldades que se impõem aos povos indígenas brasileiros, sempre encontramos novas formas de ser e estar no mundo.

Na política, nas artes, nas redes sociais e na Academia, sempre é possível encontrar indígenas que se colocam de uma maneira a reafirmar sua identidade, seu orgulho e seu pertencimento.

Então, ainda que tenhamos muita dor e muito luto para elaborar, principalmente durante este período de pandemia da COVID-19, vemos sempre novas lideranças surgindo e novos discursos aparecendo. Temos mais de 500 anos de lutas e nos sentimos prontos e preparados para mais 500 – em respeito à memória de nossos antigos, que abriram este caminho, e em deferência aos nossos novos, que vão continuar essa luta quando não estivermos mais aqui”.