Senadores ignoram direitos indígenas ao analisar PEC 48 do Marco Temporal

Argumentos usados durante sessão da CCJ reproduzem visão ignorante sobre a realidade dos povos indígenas no Brasil.

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Publicada em: 12/07/2024 às 17:52

Mais uma vez, os direitos dos povos indígenas estão em risco. Nesta quarta-feira (10), a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado se reuniu para discutir em caráter de urgência a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/2023, que insere a tese do Marco Temporal na Constituição Federal. Chamada pelos povos indígenas de “PEC da morte”, a proposta busca alterar o artigo 231, incluindo a limitação de que somente poderão ocorrer demarcações de Terras Indígenas (TIs) daquelas ocupadas pelos povos originários em 05 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição vigente.

Proposta pelo senador Hiran Gonçalves (PP-RR) e outros 26 representantes do legislativo, a PEC da Morte se baseia na rasa premissa de segurança jurídica para o processo de demarcação das Terras Indígenas, mas, na verdade, evidencia um sério risco aos direitos fundamentais dos povos indígenas e à democracia brasileira. A aprovação da PEC representa uma ameaça a todos os parentes/as, colocando em risco as TIs do Brasil, independente do estado de demarcação, além de incentivar as invasões e violências contra as TIs e suas populações.

Durante a sessão na CCJ, os senadores usaram argumentos enganosos para defender a tese do Marco Temporal, reforçando uma visão colonialista e preconceituosa sobre as culturas e modos de vida dos povos indígenas. Um deles foi a velha falácia de que “ há muita terra para pouco índio [sic]”, afirmando que as Terras Indígenas ocupadas se tratam de “soberania nacional perdida”. O senador Márcio Bittar (União-AC) afirmou que os povos indígenas enfrentam uma situação de extrema pobreza e defendeu que a solução seria a exploração dos recursos naturais e dos ecossistemas presentes nesses territórios.

Historicamente, a exploração de recursos naturais em TIs demonstrou ter efeitos devastadores, como evidenciado pelo aumento das atividades garimpeiras nas TIs em 787% durante o período de 2016 e 2022, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O garimpo gerou impactos negativos, como nos casos emblemáticos das Terras Indígena Yanomami, Sai-Cinza, Munduruku e Baú, que sofreram com o desmatamento, contaminação da água e do solo, aumento de doenças como malária, exploração sexual e outras violências. 

O argumento da exploração dos recursos naturais para trazer “progresso” aos territórios indígenas também foi utilizado pelo senador Hiran Gonçalves. O senador acusou o Conselho Indígena de Roraima (CIR) de ser uma espécie de inimigo do “desenvolvimento”, e a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Joenia Wapichana, de querer manter os indígenas isolados para “vender” uma ideia de preservação ambiental no cenário internacional. Não é a primeira vez que Hiran faz ataques ao CIR; em 2021, em sessão da CCJ, o senador afirmou que os povos indígenas e a demarcação das TIs São Marcos, Yanomami e Raposa Serra do Sol seriam empecilhos para o desenvolvimento do estado de Roraima. 

As TIs ocupam 13% do território brasileiro,  cerca de 112 milhões de hectares (ha), segundo levantamento publicado em 2023, pelo MapBiomas. Em comparação, às grandes propriedades rurais que ocupam 21,5% do território nacional. Também é sabido que a distribuição dessas terras agrícolas é extremamente desigual, com grandes quantidades de terra concentradas nas mãos de poucos proprietários rurais. 

Os povos indígenas são os grandes responsáveis pela proteção do meio ambiente e para o equilíbrio climático do planeta, contrapondo o histórico de ações de exploração dos recursos naturais que geraram um rastro de violências e morte aos povos indígenas.  Segundo o MapBiomas, as TIs perderam menos de 1% de sua área de vegetação nativa no período de 1985 a 2022, enquanto as áreas privadas devastaram 17%. Esta é mais uma evidência da importância das Terras Indígenas e dos povos originários para a conservação de biomas essenciais para o futuro da humanidade. 

Vale lembrar que os senadores da CCJ discutem uma tese que já foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2023, após longo processo de deliberação. A pauta do Marco Temporal tem sido usada no cabo de guerra entre o Congresso e o STF. O senador Marcos Rogério (PL-RO) chegou a afirmar na sessão que “não aceitar o Marco Temporal é não aceitar o papel do poder legislativo”, composto pelos representantes eleitos via processo eleitoral. No entanto, sabe-se que os políticos apoiadores da tese têm ligações com o agronegócio e buscam validar Marco Temporal para avançar interesses próprios que não refletem necessariamente na melhoria da qualidade de vida da população brasileira que os elegeu. Além de ignorar os direitos de 1,69 milhão de indígenas brasileiros respaldados pelo artigo 231 da Constituição. 

Outro fato que chamou a atenção durante a discussão na CCJ foi o posicionamento fraco do líder do governo federal no Senado, senador Jaques Wagner (PT-BA), que assumiu uma postura de conciliação com a bancada ruralista interessada na aprovação do Marco Temporal. O caráter pacificador de Wagner é uma contradição ao posicionamento do próprio Ministério dos Povos Indígenas (MPI), que é contra a tese ruralista e qualquer retrocesso em relação aos direitos dos povos originários. A falta de postura e mobilização mais incisivas por parte do Governo Federal sobre a ameaça do Marco Temporal soma-se a outras frustrações trazidas pelo governo Lula, que falhou em demarcar todas as Terras Indígenas prometidas em seu primeiro ano de mandato.

As tentativas de conciliação sobre a tese do Marco Temporal são, na verdade, tentativas de negociar os direitos duramente conquistados após anos de luta dos povos indígenas. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e suas organizações de base se manifestam contra qualquer movimentação neste sentido. 

A votação da PEC 48/2023 foi adiada para o mês de outubro após pedido de vista coletivo. Até lá, o movimento indígena vai continuar mobilizando comunidades e coletivos pela manifestação contra o Marco Temporal. Vamos ocupar os territórios e as telas com informações sobre os riscos que a PEC representa para os povos indígenas e para o futuro do planeta.

Foto: Vicente Buya.