Entre 2023 e 2025, a Amazônia atravessou um dos períodos mais severos de seca e incêndios já registrados em sua história recente. O ciclo de extremos climáticos foi impulsionado por uma combinação de fatores, como o El Niño, o aquecimento do Atlântico Norte, o desmatamento e a degradação florestal, transformando o que antes eram estiagens sazonais em uma crise ambiental e humanitária de grandes proporções, em que os povos indígenas foram um dos principais atingidos.
A Coiab analisou os dados de queimadas e secas extremas nesse período e constatou que a demarcação dos territórios indígenas é a forma mais efetiva de mitigar os impactos acumulados sobre os povos indígenas, uma vez que é a ação predatória de degradação florestal e de modos de vida que produz a futura desertificação da Amazônia.
Em 2023, os primeiros sinais de colapso hidrológico já se faziam visíveis em diferentes regiões da Amazônia. Porém, foi no ano seguinte que se consolidou o agravamento do quadro: rios secaram a níveis históricos, comunidades ficaram isoladas e centenas de escolas e postos de saúde interromperam atividades por falta de transporte, água potável e combustível. Além disso, inúmeras espécies de animais tiveram seu ciclo biológico comprometido, com níveis de água aquém das necessidades.
Em 2024, o Amazonas foi o único estado a registrar seca excepcional, conhecida como S4, o nível mais grave na escala do Monitor de Secas da Agência Nacional de Águas (ANA), evento historicamente esperado apenas a cada 50 ou 100 anos e não em anos subsequentes, como nesse caso, que se iniciou em 2023. A seca extrema (S3) se espalhou por Acre, Rondônia e Mato Grosso, consolidando uma crise regional de seca e queimada histórica.
O caso, que não ganhou a repercussão necessária tampouco a ação estatal, pode ser analisado com mais profundidade por meio dos dados acumulados compilados pela Coiab e lançados agora, durante a COP30, que mostram que a área sob influência direta da seca extrema saltou de 873 mil hectares em junho para mais de 21 milhões em setembro de 2024, um aumento de 2.300% em apenas três meses. No mesmo período, mais de 160 Terras Indígenas foram diretamente afetadas em toda a Amazônia Legal.
“O que vivenciamos não foi uma estiagem isolada, mas um colapso ambiental em curso”, destaca Toya Manchineri, coordenador-geral da Coiab. “A crise climática se manifesta no cotidiano das comunidades quando o rio seca, o peixe desaparece, o barco não chega e a floresta, antes úmida, passa a queimar.”
A seca que não cessou
Mesmo com o enfraquecimento do El Niño e a entrada do fenômeno La Niña no fim de 2024, os impactos acumulados não cessaram. Desde o início de 2025, observa-se um deslocamento da crise para a Amazônia Oriental: Maranhão e Tocantins passaram a concentrar as maiores áreas sob seca grave (S2), indicando a persistência e a expansão dos efeitos da estiagem prolongada.
A neutralidade climática observada em 2025 não significou estabilidade. O primeiro semestre do ano combinou secas severas no leste da Amazônia com cheias históricas no estado do Amazonas, onde mais de meio milhão de pessoas foram afetadas e 40 municípios entraram em situação de emergência. Em Manaus, o Rio Negro atingiu 29,02 metros, um metro abaixo da maior cheia já registrada.
A correlação entre seca e fogo foi evidenciada pelos dados do Banco de Queimadas do INPE e do MapBiomas Fogo, que mostram que a Amazônia viveu, em 2024, o maior registro de área queimada dos últimos 40 anos. O bioma concentrou 52% de toda a área queimada no Brasil e registrou um aumento de 117% em relação aos anos anteriores, totalizando 15,6 milhões de hectares queimados.
Pela primeira vez desde 1985, a formação florestal (43%) superou as pastagens (33,7%) como classe de uso do solo mais atingida, revelando que a floresta úmida, antes resistente, tornou-se altamente vulnerável à propagação das chamas. Além disso, 44,7% das áreas queimadas entre 1985 e 2023 voltaram a queimar entre 2013 e 2023, demonstrando a reincidência do fogo sobre os mesmos territórios e a ausência de respostas estruturais de prevenção e manejo.
“A floresta está seca e o fogo se repete”, afirma Vanessa Apurinã, gerente de Monitoramento Territorial Indígena (Gemti) da Coiab. “Isso não é um desastre natural, é resultado de escolhas políticas, econômicas e da ausência de políticas públicas que coloquem os povos indígenas no centro da resposta.”
Metodologia e recomendações
O boletim utiliza dados geoespaciais, climáticos e de campo referentes ao período de abril de 2023 a maio de 2025. As análises foram baseadas nos índices SPI (Índice de Precipitação Padronizada) e SPEI (Índice de Precipitação-Evapotranspiração Padronizada), que medem o déficit hídrico acumulado, e em informações do Monitor de Secas (ANA). Para o fogo, foram cruzados dados do INPE e do MapBiomas Fogo, permitindo correlacionar os períodos de estresse hídrico com o avanço das queimadas em Terras Indígenas.
As Terras Indígenas, mesmo cumprindo papel central na proteção dos ecossistemas e na estabilidade climática global, foram duramente afetadas. A falta de infraestrutura, o isolamento e a fragilidade institucional ampliaram a vulnerabilidade das comunidades diante da crise.
Entre os efeitos observados estão a escassez de água e alimentos, a perda de fauna e flora e a migração forçada de famílias. Em muitas regiões, as respostas institucionais foram inexistentes ou insuficientes, cabendo às próprias comunidades criar estratégias locais de sobrevivência.
O relatório traz recomendações que visam enfrentar as causas estruturais da crise climática, reduzindo o desmatamento, combatendo o garimpo e ampliando o financiamento direto aos territórios indígenas. Em curto prazo, a Coiab recomenda fortalecer a demarcação e a gestão territorial indígena como estratégia de mitigação climática, investir no monitoramento de ilícitos e na restauração de nascentes e florestas. Além de enfrentar as causas estruturais da crise climática, ampliar o financiamento direto aos territórios indígenas é uma das respostas mais efetivas que se pode ter nesse cenário.
“Demarcar é uma política climática. Cada Terra Indígena homologada representa uma área de floresta viva, que armazena carbono, regula o clima e sustenta a vida”, reforça Toya.
