Marco Temporal: “Direitos territoriais indígenas não são negociáveis”, afirma COIAB após decisão do STF

Embora o afastamento do marco temporal seja uma conquista, ainda há brechas que podem fragilizar direitos, e o Estado brasileiro precisa cumprir integralmente seu dever de demarcar as terras indígenas

Por: Tainá Rionegro

Publicada em: 19/12/2025 às 19:15

O Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou, novamente, maioria contra a tese do marco temporal para reconhecimento de Terras Indígenas, ao analisar a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7582, 7583 e 7586, que questionam a Lei nº 14.701/2023, aprovada pelo Congresso poucos meses depois de a própria Corte declarar a inconstitucionalidade dessa tese no julgamento do RE 1.017.365 (Tema 1031). A conclusão, porém, é definida pelas organizações indígenas como uma “vitória parcial”. 

Embora seja reafirmada a natureza originária, imprescritível e anterior ao Estado brasileiro dos direitos territoriais indígenas, parte das soluções propostas pelo voto do relator, ministro Gilmar Mendes, abre margem para relativizações práticas desses direitos e pode impactar negativamente a efetivação das demarcações. 

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A Lei nº 14.701/2023 tentou reinstalar, por via legislativa, a tese já rejeitada pelo STF: a de que somente seriam consideradas Terras Indígenas aquelas ocupadas tradicionalmente até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Na prática, especialistas e organizações indígenas classificaram a norma como instrumento de restrição de direitos fundamentais e de institucionalização de injustiças históricas. Diante disso, movimento indígena, organizações parceiras e partidos recorreram novamente ao Supremo.

Em seu voto, Gilmar Mendes afastou a aplicação do marco temporal e reconheceu a omissão histórica do Estado brasileiro em cumprir o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que determinava que todas as demarcações fossem concluídas até 1993. Para enfrentar essa mora, o ministro fixou um prazo de dez anos para que a União conclua os procedimentos pendentes, com a previsão de regimes diferenciados entre processos concluídos dentro e fora desse período.

Ao mesmo tempo, o relator homologa em seu voto o produto da Comissão Especial instaurada no âmbito do STF para tratar do tema, mesmo sem a participação efetiva do movimento indígena, que deixou as negociações denunciando assimetria de forças, ausência de garantias de participação adequada e riscos de retrocessos. A decisão, na avaliação de organizações indígenas, reintroduz lógicas tutelares e ignora o direito à consulta e consentimento livre, prévio e informado previsto na Convenção 169 da OIT.

Os votos dos demais ministros reafirmaram a natureza originária dos direitos territoriais, a impossibilidade de fixação de marcos temporais e o caráter declaratório das demarcações. Ministros como Flávio Dino, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin apresentaram posições protetivas mais firmes, enfatizando que nenhuma lei ou mesmo emenda constitucional pode reduzir direitos indígenas e que quaisquer soluções administrativas devem partir da centralidade da proteção territorial.

Entre os pontos mais sensíveis, estão os mecanismos de indenização ampliada a ocupantes não indígenas, a possibilidade de permanência desses até o pagamento de compensações, a flexibilização de procedimentos e a criação de arranjos institucionais que, na prática, podem deslocar a responsabilidade do Estado e fragilizar a efetividade do reconhecimento territorial.

Outros ministros, como André Mendonça e Nunes Marques, registraram ressalvas e defenderam a constitucionalidade do marco temporal, ainda que tenham acompanhado formalmente a linha do relator em respeito à maioria já formada na Corte.

Direito originário versus soluções “conciliatórias”

A análise apresentada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) reforça que o Estado brasileiro não pode substituir o dever constitucional de demarcar territórios por saídas negociadas que relativizem direitos ancestrais. O território, apontam as organizações, não é mera propriedade nem ativo patrimonial: constitui elemento vital para a existência física, cultural, espiritual e coletiva dos povos indígenas.

Ao legitimar a Comissão Especial e suas propostas mesmo sem a participação plena dos povos afetados, a decisão do STF também é criticada por violar o princípio da autodeterminação e desconsiderar que o direito à consulta não se resume a formalidade, mas é condição para validade de medidas que impactem diretamente territórios e modos de vida.

Dra. Auzerina Duarte, advogada indígena Makuxi, gerente do setor jurídico da COIAB explica que o afastamento do marco temporal é uma conquista importante, mas não podemos chamar de vitória plena enquanto persistirem brechas que fragilizam nossos direitos. “O que a Constituição afirma é claro: nossos territórios são originários, não negociáveis e não substituíveis. O Estado brasileiro tem dívida histórica com os povos indígenas e precisa cumprir seu dever de demarcar, sem condicionantes, sem tutelas e sem soluções que tentem relativizar a nossa existência.” diz.

“Vitória parcial”: proteção reafirmada, mas ameaças persistem

Para o movimento indígena, o afastamento do marco temporal pela segunda vez representa, sim, um marco jurídico relevante e um recado importante ao Congresso Nacional. Porém, a existência de brechas interpretativas, mecanismos de transição e critérios adicionais impostos pelo relator podem estimular novas disputas, atrasos e disputas judiciais, e, sobretudo, abrir portas para retrocessos indiretos.

A Coiab alerta que garantir os direitos territoriais não é apenas questão jurídica, mas também política, social e civilizatória. O STF, afirmam as organizações, precisa consolidar leitura ampla e integralmente protetiva, coerente com a Constituição de 1988 e com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Isso significa assegurar avanços reais na demarcação, sem filtros ou condicionantes que esvaziem os direitos originários e sem legitimar arranjos que, na prática, substituam territórios tradicionais por soluções paliativas.

Enquanto a decisão não se traduzir em demarcações concluídas, segurança territorial e proteção efetiva às comunidades, a luta permanece, nos tribunais e nos territórios.