A COIAB e o Opi denunciam publicamente o conteúdo do Projeto de Lei (PL) n° 490, que tramita na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. O PL propõe alterações na Lei nº 6001 de 1973, o conhecido Estatuto do Índio e, dentre as inúmeras violações de direitos, destaca-se questões relacionadas a alterações do processo de demarcação de terras indígenas e mudanças drásticas da política pública relacionada aos povos indígenas isolados. Em relação aos povos indígenas isolados, a PL .490, em seu artigo 29°, dispõe o seguinte:
Art. 29. No caso de indígenas isolados, cabe ao Estado e à sociedade civil o absoluto respeito a suas liberdades e meios tradicionais de vida, devendo ser ao máximo evitado o contato, salvo para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública.
§1º Todo e qualquer contato com indígenas isolados deve ser realizado por agentes estatais e intermediado pela Fundação Nacional do Índio.
§2º É vedado o contato e a atuação junto a comunidades indígenas isoladas de entidades particulares, nacionais ou internacionais, salvo se contratadas pelo Estado para os fins dispostos no caput, sendo, em todo caso, obrigatória a intermediação do contato pela Fundação Nacional do Índio.
Em primeiro lugar, cabe-nos questionar o porquê de o contato forçado com povos indígenas isolados estar previsto nos casos em que é necessário “intermediar ação estatal de utilidade pública”. Evidentemente, “utilidade pública” se refere a toda e qualquer atividade (supostamente) de “interesse público”, tal como rodovias, hidrelétricas, mineração, projetos de colonização, agropecuária, entre outras iniciativas desenvolvimentistas. Faz 30 anos que tal entendimento foi descartado, extinguindo práticas de contato historicamente genocidas. Desde 1987 é proibida toda e qualquer ação ou projeto desenvolvimentista em território de indígenas em isolamento, portanto, o contato forçado nos casos de (suposto) “interesse público”.
Importante lembrar que a implementação de grandes projetos de (suposto) “interesse público” nas décadas de 1970 e 1980 – assim como nas décadas anteriores – justificaram o contato forçado com povos isolados e ocasionaram subsequentes processos de mortes em massa. Há inúmeros casos, tal como do povo Panará, contatado e violentado em 1975, no contexto da construção da BR-163 (Cuiabá-Santarém); dos Waimiri Atroari, contatados após o uso de bombas pelo Exército brasileiro durante a construção da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista); do povo Matis, no oeste do Amazonas, cuja redução populacional do pós contato quase os leva ao completo extermínio, no contexto de construção de trecho da rodovia Perimetral Norte em meados da década de 70; dos diferentes grupos locais Awá no Maranhão, contatados e resgatados ao longo das década de 1970 e 1980 em trechos de floresta que restaram em região devastada pela construção da ferrovia Carajás.
São inúmeros os casos de contatos e subsequentes extermínios de povos indígenas realizados sob o pretexto de “ação de utilidade pública”, motivo pelo qual uma importante mudança de postura do Estado brasileiro tenha ocorrido em 1987: do contato como medida para “intermediar ações de utilidade pública” passou-se ao respeito de suas diferenciadas formas de vida e expressão. Desde então foram proibidos os contatos forçados e toda e qualquer atividade econômica em seus territórios. O princípio de precaução, o direito à autodeterminação e garantia de seus territórios íntegros e intangíveis são direitos fundamentais que estão previstos não só em normativas nacionais, bem como de organismos internacionais dos quais o Brasil faz parte.
Um outro ponto que escancara os reais interesses do PL é o parágrafo 2º, o qual traz outra grave violação de direitos humanos dos povos indígenas isolados, pois permitiria ao Estado brasileiro terceirizar, sob sua intermediação, o contato com povos indígenas isolados nos casos de “ações de utilidade pública”. A lei facilitaria, por exemplo, que grupos religiosos extremistas, sob a cortina oficial do Estado brasileiro, realizassem contatos forçados com esses povos e grupos isolados. A aliança entre o Estado e a Igreja em iniciativas de contato e evangelização de povos indígenas não é nova e provocou conhecidamente inúmeros casos de etnocídio e genocídio. São práticas já abandonadas pela Igreja Católica desde meados do século XX; e na década de 90, o Estado brasileiro extinguiu convênios e cooperações técnicas com grupos fundamentalistas, tal como a Missão Novas Tribos do Brasil. Ou seja, a marca retrógrada e genocida dos nossos governantes, seguindo a lógica colonial de submissão dos povos indígenas isolados, resgata uma estratégia pública descartada há décadas, considerada desprezível, e superada definitivamente pela nossa Constituição de 1988.
Resumidamente, é por essas evidentes violações de direitos humanos dos povos indígenas isolados, que denunciamos o trâmite da PL nº 490. Por um lado, se aprovada pelo Congresso Nacional, a PL abrirá os territórios dos povos isolados à exploração econômica e os submeterão a supostas “ações de interesse público”. Por outro, acarretará necessariamente em contatos forçados por meio de violentas práticas de grupos privados, dentre eles os de religiosos extremistas, o que resultará em mortes e esbulho territorial dos povos indígenas isolados.
Será, certamente, mais um gigantesco retrocesso em nossa legislação, bem como um total desrespeito às diferenciadas formas de vida e expressão, e às decisões e territórios dos povos indígenas isolados, conquistados com muita luta pelos povos indígenas e a sociedade civil no contexto de redemocratização do país.
25 de maio de 2020
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)
Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi)
COIAB e Opi denunciam PL 490: Projeto de Lei promove contato forçado com povos indígenas isolados, permitindo a atuação de extremistas religiosos e a abertura econômica das terras indígenas
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