STF inicia julgamento do marco temporal sob tensão institucional e forte presença indígena

Sustentações orais dos advogados indígenas expõem disputa entre Poderes, riscos climáticos e a reafirmação dos direitos originários

Por: Tainá Rionegro

Publicada em: 11/12/2025 às 15:03

O primeiro dia de julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre o marco temporal foi marcado por fortes demonstrações de tensão institucional, disputas de narrativa entre Poderes e a reafirmação de que o país enfrenta uma encruzilhada histórica. A sessão, dedicada às sustentações orais das partes nas ADC 87 e ADIs 7582, 7583 e 7586, abriu os trabalhos sob o enunciado simbólico de “Justiça e reparação”, lembrando que o tema não se limita a litígios fundiários, mas atravessa séculos de expulsões e violências praticadas pelo próprio Estado brasileiro.

A discussão retorna ao plenário pela terceira vez, evidenciando o impasse que impede o avanço da política indigenista no Brasil. A tensão se intensificou após o Senado aprovar, na véspera, por 52 a 15 votos, a PEC que tenta inscrever o marco temporal na Constituição, repetindo dispositivos da Lei 14.701/2023. Para juristas, trata-se de uma tentativa explícita de confrontar o Supremo e blindar uma tese já considerada incompatível com a ordem constitucional de 1988 e de desafiar o controle de constitucionalidade exercido pela Corte.

As sustentações apresentadas nesta quarta-feira reafirmaram que o direito territorial indígena é originário, ele antecede o Estado e independe da presença física em 1988, justamente porque muitos povos foram removidos, expulsos ou dizimados antes da promulgação da Constituição. A proposta legislativa de restringir esse direito a um recorte temporal foi tratada como ficção jurídica construída para legitimar expropriações históricas e aprofundar conflitos fundiários.

Diversos especialistas classificaram a legislação aprovada pelo Congresso como “lei da grilagem”, por converter práticas ilegais em lucro e permitir a reabertura de disputas em territórios já reconhecidos. Ao flexibilizar o usufruto exclusivo das Terras Indígenas e fragilizar a consulta livre, prévia e informada, a medida abre caminho para empreendimentos minerários e grandes obras em territórios sensíveis.

O impacto climático também foi destacado, já que fragilizar Terras Indígenas libera áreas essenciais ao desmatamento e ameaça compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Foi lembrado que, em 2023, fundos que administram mais de 8 trilhões de dólares enviaram carta ao governo manifestando preocupação com a insegurança jurídica gerada pela tese do marco temporal.

A Advocacia Geral da União reforçou que o critério do marco temporal não tem sido aplicado e que as demarcações avançaram desde 2023, 23 reconhecidas, sendo quatro homologadas durante a COP30. Segundo a AGU, os entraves às demarcações são administrativos, não jurídicos, e a Constituição já oferece base suficiente para orientar o processo.

Enquanto parlamentares ruralistas defenderam que o marco temporal traria previsibilidade e segurança jurídica, juristas afirmaram que a medida cria retroatividade proibida, reabre disputas e amplia a instabilidade fundiária. O debate revelou uma tentativa de backlash legislativo, uma reação do Congresso para limitar o alcance das decisões do Supremo e reverter avanços protetivos dos últimos anos.

As vozes indígenas no plenário

As lideranças indígenas protagonizaram algumas das falas mais contundentes da sessão. A participação de Auzerina Macuxi, gerente da Assessoria Jurídica Indígena da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), foi um dos momentos centrais da sessão. Ao final da sessão, afirmou: “O Estado brasileiro tenta, mais uma vez, dizer que nossos direitos têm prazo de validade. Nós estamos aqui para lembrar que direito originário não tem data, não tem condicionante e não cabe dentro de uma PEC. Cada território negado é um futuro que se tenta arrancar do nosso povo.”

Ricardo Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), relembrou a dimensão histórica da resistência ao afirmar que “para nós, povos indígenas, terra não é mercadoria, cada cocar que vocês veem aqui é fruto de 526 anos de luta”. Dinamam Tuxá, coordenador executivo do Apib, relatou a violência estatal de forma direta ao declarar que “meu povo foi removido por completo, disseram que em seis meses devolveriam nossa terra, já são 30 anos e nada foi feito”.

As falas também alertaram para o impacto sobre povos isolados, para a tentativa de legalizar invasões e para os riscos de abrir Terras Indígenas ao mercado sem consulta prévia. A mensagem final ecoou como síntese do dia, proteger os povos indígenas não é custo, é investimento, e direito não se negocia, terra não se vende, racismo não se vota, se combate.

Coiab Alerta

A Coiab lançou uma nota técnica alertando que a Lei 14.701/2023, que tenta manter a tese do Marco Temporal e continuar a impor novas restrições às demarcações, é inconstitucional e representa grave ameaça aos direitos originários. A organização lembra que o artigo 231 da Constituição garante que os direitos territoriais indígenas são originários, imprescritíveis e sem qualquer limitação temporal, e que o próprio STF já rejeitou a tese do marco temporal em 2023 ao reconhecer a história de expulsões e violências que impediram a presença física de muitos povos em 1988. 

 

LEIA NA ÍNTEGRA 

A nota também critica a Mesa de Conciliação criada pelo STF, afirmando que povos indígenas foram chamados a negociar direitos já garantidos, sem consulta prévia, livre e informada. Para a Coiab, a lei gera insegurança jurídica, aumenta conflitos, fragiliza o usufruto exclusivo e legitima invasões ao permitir atividades econômicas de terceiros dentro das Terras Indígenas. Toya Manchineri, coordenador-geral da Coiab, reforça que o Marco Temporal é uma invenção política sem base jurídica, “usada para legalizar invasões e expandir fronteiras econômicas, enquanto a demarcação é reparação histórica”

Dados do MapBiomas mostram que Terras Indígenas são fundamentais para o clima: perderam apenas 1,2% de vegetação nativa em 30 anos, contra 19,9% das áreas privadas, ocupam 13,9% do país e concentram mais de 115 milhões de hectares de floresta preservada.