Governo brasileiro precisa reconhecer na prática papel dos povos indígenas para combater a fome e a emergência climática

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Publicada em: 25/09/2024 às 10:54

O presidente Lula voltou a falar sobre a necessidade de ouvir os povos indígenas e comunidades locais para construir soluções para o desmatamento na Amazônia. O discurso ocorreu durante a abertura do debate de chefes de Estado e de governo da 79ª edição da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), nesta terça-feira (24), em Nova York, onde o presidente do Brasil levantou temáticas como a crise climática, fome e guerras.

No entanto, o que falta ao presidente do Brasil é atualizar o seu discurso. Lula defendeu que o país tem enfrentado a crise climática e lutado contra quem lucra com a degradação ambiental, além de apresentar dados otimistas em relação ao desmatamento. Também reproduziu um discurso já conhecido, mas pouco colocado em prática: a impossibilidade de pensar em soluções climáticas sem ouvir os povos indígenas e comunidades locais.

Na realidade, o Governo Federal tem falhado em integrar os conhecimentos tradicionais e a participação dos povos indígenas na gestão da crise ambiental. Frequentemente, as experiências e perspectivas ancestrais são deixadas de lado na construção de políticas públicas e tomadas de decisão, mesmo os povos indígenas sendo os grandes protagonistas na conservação e gestão sustentável dos recursos naturais.

Para além da exclusão dos povos indígenas nas tomadas de decisão, o Governo também não tem fornecido o apoio necessário para os desafios específicos enfrentados por essa população. Segundo levantamento feito pela Gerência de Monitoramento Territorial Indígena da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (GEMTI/Coiab), 149 Terras Indígenas (TIs) da Amazônia brasileira estão vivenciando um contexto de seca atualmente. Desse número, pelo menos 42 estão enfrentando uma seca extrema.

Os desafios enfrentados por esses territórios incluem a escassez de águas, secas absolutas dos rios em diversas regiões, restrição do uso da água, além da perda de cultivos e floresta. Para além dos serviços ecossistêmicos que estão diretamente ligados à sobrevivência desses povos, outro ponto que não tem sido levado em consideração são os impactos sobre a cultura e as identidades dos indígenas e seus territórios.

A erradicação da fome também foi uma das bandeiras levantadas por Lula durante o discurso. O presidente criticou os recursos destinados para os arsenais nucleares, afirmando que poderiam ser utilizados para combater a fome e a mudança climática. No entanto, não se vê uma preocupação do presidente em investir nos setores que realmente alimentam o Brasil. Recentemente, o Plano Safra 2024/2025 destinou R$ 400,59 bilhões em linhas de crédito e incentivos agrícolas para a agricultura empresarial – podendo chegar a um total de R$ 508,59 bilhões. Um número bem maior que os 79 bilhões destinados ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), que incentiva os pequenos produtores, responsáveis por produzir 70% dos alimentos consumidos no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Se comparado com o orçamento previsto de R$ 463 milhões em 2025 para a demarcação de territórios indígenas, vê-se que a garantia dos direitos territoriais dos povos originários não é uma prioridade do governo brasileiro. Só na Amazônia brasileira, há 123 Terras Indígenas em diferentes fases do processo de demarcação. É preciso criar mecanismos para agilizar a homologação desses territórios, garantindo aos povos originários o direito às suas terras ancestrais.

Vale lembrar que as políticas voltadas para os povos indígenas encontram barreiras em espaços como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF). A tese do Marco Temporal, mesmo julgada inconstitucional pela Suprema Corte em 2023, é objeto de uma mesa de conciliação com uma maioria de representantes do agronegócio e outros setores com interesses próprios, que querem negociar em cima dos direitos dos povos indígenas. No Senado, discute-se a aprovação da PEC 48/2023, que quer tornar o Marco Temporal constitucional. Esta é mais uma ameaça aos direitos fundamentais dos povos indígenas.

Lula também destacou que “o Brasil desponta como celeiro de oportunidades neste mundo revolucionado pela transição energética”, chegando a ser um país com 90% da eletricidade proveniente de fontes renováveis, como hidrelétricas e energia eólica. Historicamente, esses empreendimentos buscam ampliar a eficiência econômico-energética, baseados no progresso, deixando em segundo plano o impacto social, cultural, identitário, ambiental nos povos indígenas e comunidades tradicionais que habitam os territórios atingidos.

A pauta da economia menos dependente de combustíveis fósseis também foi levantada. Lula defendeu que era necessário enfrentar a descarbonização do planeta e superar metas obsoletas na redução de emissão de carbono. No entanto, seu governo é favorável a empreendimentos como a exploração de petróleo na bacia da foz do Rio Amazonas, que ameaça três Terras Indígenas na costa norte do estado do Amapá, e a exploração de potássio em Autazes, no Amazonas, que põe em risco um território tradicional do povo Mura. Se o Brasil pretende caminhar para uma transição energética, não pode investir em projetos que ameaçam territórios e a biodiversidade na Amazônia. Os povos indígenas já se manifestaram contra a exploração de combustíveis fósseis em suas terras.

A Coiab defende a integração da demarcação dos territórios indígenas como política climática e meta global dentro das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC, em inglês) do país. A demarcação de terras é uma estratégia fundamental não só para a adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, mas também para garantir a segurança alimentar de milhares de pessoas dentro dos territórios indígenas, que hoje sofrem com a seca e as queimadas, sem acesso a direitos fundamentais como o acesso à água e alimentação.

O presidente Lula e os governantes dos Estados da Amazônia brasileira precisam transformar suas palavras em ação, inserindo de fato os povos indígenas nos processos de tomada de decisão. Passou da hora das autoridades políticas globais reconhecerem o papel dos povos originários para a superação de problemas como a fome e a crise climática.

 

Imagem: Ricardo Stuckert.