Terras indígenas com povos isolados na Amazônia são mais ameaçadas que territórios sem a presença dessa população, mostra nota técnica publicada pela COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) nesta quarta, 11. O estudo apresenta números sobre cinco riscos que afetam direitos fundamentais de isolados: desmatamento, incêndios, grilagem, mineração e desestruturação de políticas públicas específicas, considerada um risco jurídico-institucional e um agravante na exposição de territórios aos demais processos.
As ameaças se consolidaram de maneira expressiva nos últimos três anos. De 2019 a 2021, seis das dez terras indígenas (TIs) com maior aumento no desmatamento no bioma têm povos isolados. Nesse tipo de território também se concentram 48% dos focos de calor, com uso do fogo ligado à mineração e à grilagem. Pesquisadoras, indigenistas e lideranças indígenas alertam que, além de degradarem a biodiversidade, tais fatores podem ter consequências irreversíveis para a vida humana, como a dizimação de povos isolados.
“A Amazônia brasileira é o lugar do mundo com a maior concentração de populações indígenas em situação de isolamento. Exigimos que o novo governo federal reverta o legado de destruição deixado pelo anterior, que desmantelou as políticas indigenistas e os nossos direitos. O movimento indígena está organizado para enfrentar as ameaças aos nossos territórios e à autodeterminação dos povos indígenas, e para defender a vida dos povos isolados”, afirma Élcio Severino da Silva Manchineri, coordenador executivo da COIAB.
Isolados sob risco “alto” ou “muito alto”Os 44 territórios com povos indígenas isolados na Amazônia ocupam juntos 653 km², o equivalente a 62% da área de todas as terras indígenas no bioma. A nota técnica indica que doze estão sob risco “alto” ou “muito alto”, e destaca quatro em situação crítica imposta: TI Ituna/Itatá, no Pará; TI Jacareúba/Katawixi, no Amazonas; TI Piripkura, em Mato Grosso; e TI Pirititi, em Roraima.
“As terras indígenas no Brasil estão sendo usurpadas e a fragilidade jurídico-institucional aumenta ainda mais a exposição de povos a terem suas terras invadidas pelo desmatamento, por incêndios criminosos e pela mineração ilegal. Os dados refletem a violação do direito ao uso territorial indígena em curso e indicam a necessidade de assegurar os direitos fundamentais de originárias e originários”, diz Patrícia Pinho, diretora adjunta de pesquisa no IPAM.
Cinco vezes mais incêndiosNa comparação do período de 2019 a 2021 com o triênio anterior, de 2016 a 2018, a TI Ituna/Itatá teve alta de 441% nos focos de calor, revelando a ocorrência de quase cinco vezes mais incêndios no território. A terra indígena também teve o segundo maior aumento em área desmatada entre os períodos: foi seis vezes maior. O estudo expõe outro dado alarmante: 94% do território tem sobreposição com registros de CAR (Cadastro Ambiental Rural), um indicador da invasão e da grilagem de terras.
Entre as dez mais afetadas por incêndios, a TI Piripkura teve aumento de 54% nos focos de calor entre 2019 e 2021 em relação ao período entre 2016 e 2018. O desmatamento foi cerca de 20 vezes maior no mesmo intervalo, colocando o território também entre os dez mais desmatados nos últimos três anos. Um quinto (22%) da área está sobreposta com CAR. Instrumento criado pelo Código Florestal em 2012 e regulamentado em 2014, o registro autodeclaratório passou a ser utilizado, ilegalmente, para emular posse.
CAR em sobreposição com TIs“O avanço do CAR no interior das terras indígenas é o mais preocupante, pois é um atestado de que o crime tem compensado, é uma forma de os criminosos ‘formalizarem’ as invasões. Mas, por lei, essas terras são dos povos indígenas. Hoje, com a tecnologia, temos tudo mapeado, sabemos exatamente onde os crimes ambientais vem acontecendo. Agora é o poder público agir, restabelecendo instrumentos de fiscalização já existentes nas políticas ambientais, com responsabilização de infratores”, avalia Rafaella Silvestrini, pesquisadora no IPAM.
Terras indígenas com isolados, no geral têm maior área (10,9%) com sobreposição de cadastros ilegais do que as sem isolados (7,8%), e são a metade dos territórios atingidos pelo garimpo. As TIs Kayapó e Munduruku, no Pará, Yanomami, em Roraima e Amazonas, e Sawré Muybu, também no Pará, com presença de isolados, são, nessa ordem, as que possuem maior área invadida por garimpeiros.
“Os nossos territórios e dos nossos parentes isolados estão cada vez mais sendo invadidos por madeireiros, narcotraficantes, garimpeiros, e outros predadores de floresta, colocando em risco nossas vidas e daqueles que optaram por não interagir com a sociedade ocidental, após traumáticos encontros com os não indígenas. A sociedade e o Estado têm o dever de respeitar essa escolha e proteger os seus territórios de invasões”, explica Manchineri.
Demarcação e violação de direitosMais de um terço (34%) dos 44 territórios indígenas com presença de povos isolados na Amazônia ainda não foram demarcados. Processos de demarcação e de renovação de Portarias de Restrição de Uso, cabíveis às terras com isolados, são responsabilidades do órgão indigenista federal, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). A nota técnica explica que é reconhecida aos isolados a posse permanente de territórios que habitam, independente da demarcação, mas reforça que esse direito vem sendo constantemente violado.
“Há mais de um ano, as organizações indígenas e seus aliados estão mobilizados em uma campanha para engajar a sociedade e pressionar o governo federal a renovar as portarias de restrição de uso de quatro terras indígenas onde existe a presença confirmada, ou em estudo, de povos indígenas isolados. A Funai deve cumprir a sua missão institucional de garantir a integridade dos territórios indígenas”, acrescenta o coordenador executivo da COIAB.
Além dos riscos oferecidos pela interferência criminosa no chão da floresta, mecanismos de proteção deixaram de ser assegurados. É o caso da TI Jacareúba/Katawixi, que não teve a Portaria de Restrição de Uso renovada em dezembro de 2021.
“Esse fato abre precedentes para que a área seja ocupada por terceiros, colocando em risco a vida e a soberania dos povos. Em junho de 2022, infelizmente, testemunhamos mais um episódio da trágica consequência da falta de garantia de direitos básicos, com os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dominic Phillips na TI Vale do Javari, onde se concentra o maior número de registros de povos isolados no mundo. O crime revela uma fração dos riscos aos quais povos indígenas, isolados ou não, estão expostos todos os dias”, conclui Martha Fellows, pesquisadora no núcleo indígena do IPAM e coordenadora do estudo.
Informações para a imprensaCOIAB – Alana Manchineri, comunicacao@coiab.org.br (92) 98587-9653
IPAM – Bibiana Alcântara Garrido, bibiana.garrido@ipam.org.br (61) 99264-7371