Por Assessoria Jurídica/Coiab
Hoje, 30/06, o STF inicia julgamento do recurso extraordinário n. 1017365, também conhecido como caso Xokleng. O processo teve repercussão geral reconhecida e servirá de parâmetro para a demarcação das terras indígenas em todo o país.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB, foi admitida no processo na qualidade de Amicus Curiae, e vem acompanhando o caso de perto, ofertando manifestação e realizando audiência com os ministros da Supremo Corte. O objetivo principal é demonstrar a inconstitucionalidade do marco temporal e o quanto essa tese jurídica é nociva aos povos e comunidades indígenas, especialmente aquelas localizadas na Amazônia brasileira.
A Amazônia brasileira é uma área com uma extensão de aproximadamente 5,2 milhões de km2 que corresponde a 61% do território nacional. A maior parte das Terras Indígenas estão concentradas nesta região. São em torno de 110 milhões de hectares onde vivem 60% da população indígena do país, estimada em aproximadamente 440 mil pessoas, que falam mais de 160 línguas diferentes.
Nesse imenso território, vivem ao menos 180 povos indígenas distintos, além de grupos considerados “isolados”. Em toda a Amazônia Legal, existem cerca de 114 registros da presença desses indígenas que optaram por viver de forma livre e autônoma, sem contato com a sociedade envolvente.
Porém, a maior floresta tropical do planeta, e nossas terras indígenas, estão cada vez mais ameaçadas pelo desmatamento e pela cobiça de madeireiros, garimpeiros, pecuaristas e investidores do agronegócio. Muitas regiões são de difícil acesso e as políticas públicas raramente chegam até as populações mais afastadas.
Sabedor da importância desse julgamento para os povos indígenas, a COIAB elenca os principais aspectos do voto do ministro Luiz Edson Fachin, manifestando apoio incondicional para a reafirmação do direito originário dos povos indígenas as suas terras tradicionalmente ocupadas.
Pontos importantes do voto do ministro relator Luiz Edson Fachin:
Em primeiro lugar, incide sobre o disposto no artigo 231 do texto constitucional a previsão do artigo 60, § 4º da Carta Magna, consistindo, pois, cláusula pétrea à atuação do constituinte reformador, que resta impedido de promover modificações tendentes a abolir ou dificultar o exercício dos direitos individuais e coletivos emanados do comando constitucional do artigo citado.
Em segundo lugar, os direitos emanados do artigo 231 da CF/88, enquanto direitos fundamentais, estão imunes às decisões das maiorias legislativas eventuais com potencial de coartar o exercício desses direitos, uma vez que consistem em compromissos firmados pelo constituinte originário, além de terem sido assumidos pelo Estado Brasileiro perante diversas instâncias internacionais (como, por exemplo, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração das nações Unidas sobre os Povos Indígenas). Portanto, consistem em obrigações exigíveis perante a Administração Pública, consistindo em dever estrutural a ser desempenhado pelo Estado, e não meramente conjuntural.
Em terceiro lugar, por se tratar de direito fundamental, aplica-se aos direitos indígenas a vedação ao retrocesso e a proibição da proteção deficiente de seus direitos, uma vez que atrelados à própria condição de existência e sobrevivência das comunidades e de seu modo de viver.
Finalmente, em consonância com o entendimento acima manifestado, entende-se que, por se tratar de direito fundamental, a interpretação adequada à aplicação do artigo 231 deve levar em consideração o princípio da máxima eficácia das normas constitucionais, pois se nos termos do artigo 5º, §2º do texto constitucional, “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, faz-se necessário manter coerência com uma hermenêutica que cumpra os objetivos da Constituição.
No tocante a teoria do marco temporal, para o ministro relator, essa teoria deixa insolúveis algumas questões fundamentais para a qualificação da posse indígena, tendo em vista que a perda da posse das terras pelos indígenas ocorreu por diversas ações de terceiros, antes de 1988. Assim, não seria possível verificar a presença indígena na data de 05 de outubro de 1988 na área considerada, não é suficiente apontar que a terra não seria indígena. É preciso questionar-se, então, de quem seria a titularidade da área que deveria ter revertido ao patrimônio público federal, uma vez ser impossível usucapião de terra pública. Importante consignar, terra indígena não é terra devoluta; assim, as terras não podem ter ingressado no patrimônio estadual e, portanto, não podem ter sido legitimamente transferidas ao patrimônio privado.
Salienta-se ainda que a chamada teoria do marco temporal ignora, em sua formulação, a situação dos índios isolados, ou seja, comunidades indígenas de pouco ou nenhum contato com a sociedade envolvente, ou mesmo com outras comunidades indígenas.
Nesse contexto, pelas razões elencadas, o Ministro Relator concluiu que a proteção constitucional aos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 e da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.
Ao final do seu voto, o ministro Edson Fachin propõe a fixação da seguinte tese, referente à resolução do Tema 1031 da repercussão geral:
“Os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sob os seguintes pressupostos:
I – a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
II – a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;
III – a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal;
IV – a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.
V – o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;
VI – o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência;
VII – as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
VIII – as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
IX – são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito à indenização ou ação em face da União pela circunstância da caracterização da área como indígena, ressalvado o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé;
X – há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.”