“Todos os indígenas do Amazonas devem ser vacinados”, diz Ministério Público Federal

Recomendação expedida pelo MPF é vitória do movimento indígena

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Publicada em: 18/02/2021 às 02:00

O procurador da República Fernando Merloto Soave, do Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM), expediu nos últimos dias uma recomendação para que todos os indígenas do Amazonas sejam vacinados contra a COVID-19.

A decisão é considerada uma vitória do movimento indígena, através de organizações como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), a Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME), a Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN) e o Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas (Foreeia) – que vinham pleiteando esta medida junto às autoridades.

De acordo com o Plano Nacional de Imunização (PNI) em vigor hoje no Brasil, apenas os indígenas que vivem em terras homologadas estão incluídos como público prioritário dos esforços de vacinação contra a COVID-19. Esta diretriz ignora completamente indígenas que vivem em contextos urbanos ou em áreas que estão em processo de regularização.

Somente em Manaus, capital do Amazonas – uma das cidades mais atingidas pela COVID-19 no Brasil – esta orientação deixa desprotegidas 3.324 famílias indígenas, que somam quase 20 mil indivíduos, de acordo com a Coordenação de Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime). Segundo dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em todo o País são quase 325 mil indígenas que vivem em cidades, número que hoje é considerado defasado por especialistas e estudiosos.

Os dados indicam que, com essa diretriz, mais de 80 mil indígenas estavam de fora do plano prioritário para receber a vacinação contra a COVID-19 no Amazonas. Ainda segundo o IBGE, a população indígena do Estado é formada por 183,5 mil indivíduos, segundo dados de 2012. No entanto, o Plano Operacional da Campanha de Vacinação elaborado pela Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), prevê a vacinação de apenas 100.642 pessoas.

Detalhes

Em sua decisão, o procurador recomenda ao Ministério da Saúde e à Secretaria de Vigilância em Saúde que, no prazo de cinco dias, adotem as medidas administrativas necessárias para inclusão de todos os indígenas do Amazonas no grupo prioritário de vacinação contra Covid-19 – independente de viverem ou não em contexto urbano ou em áreas regularizadas.

O procurador pede ainda que a FVS-AM e os municípios providenciem a distribuição e aplicação das doses de vacinas; e solicita a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) que auxiliem neste trabalho – capacitando servidores e tirando dúvidas, por exemplo.

Os órgãos citados têm, a partir do dia 13 de fevereiro – dia em que a recomendação foi expedida – cinco dias para informar ao Ministério Público Federal as providências que irão tomar para garantir o cumprimento das medidas. Caso contrário, seus dirigentes, como o ministro Eduardo Pazuello ou o diretor-presidente interino da FVS, Cristiano Fernandes, podem ser responsabilizados judicialmente.

Extrema vulnerabilidade

Para a coordenadora-presidente da Copime, Marcivânia Sateré-Mawé, esta recomendação do Ministério Público Federal é uma vitória: “Os indígenas que estão nas cidades estão muito mais vulneráveis, vivem mais doentes. Muitas famílias e comunidades perderam suas fontes de renda e vivem em situação de extrema vulnerabilidade por conta desta pandemia. Fico muito feliz que o Ministério Público Federal esteja atento a esta realidade”.

Marcivânia contou que desde o início da pandemia diversas instituições têm se mobilizado para auxiliar os indígenas que vivem em contextos urbanos – inclusive enviando ofícios ao MPF chamando a atenção para este assunto. Outras organizações que também têm se mobilizado em torno deste tema são as já citadas AMARN e a Foreeia.

Ela lembrou ainda que esta situação dos indígenas vivendo em cidades não é uma situação exclusiva de Manaus – apenas no Amazonas, as cidades de Atalaia do Norte, Barreirinha e São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, contam com grandes contingentes de cidadãos indígenas morando em contextos urbanos.

Razões

Na recomendação, o procurador Fernando Merloto enumera algumas das razões que embasaram sua decisão. Ele cita, por exemplo, o estudo SARS-CoV-2 antibody prevalence in Brazil: results from two successive nationwide serological household surveys, da Universidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, que mostrou que a incidência do coronavírus em indígenas urbanos é cinco vezes maior que entre os não-indígenas. Outros estudos também foram listados, mostrando que, de maneira geral, as populações indígenas têm uma taxa maior de mortalidade hospitalar por COVID-19 em quase todas as faixas etárias.

Além disso, lembrou o procurador, Manaus conta hoje com uma população expressiva de indígenas venezuelanos Warao que necessitam de uma atenção especial no que diz respeito à oferta de serviços de saúde; e citou documentos feitos por inúmeras entidades, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva e a Associação Brasileira da Antropologia que demandaram que os esforços de vacinação contemplassem um público maior de indígenas.

O Grupo de Trabalho Vacinação para Todos os Indígenas do Amazonas disse, em ofício: “A decisão de vacinar apenas indígenas com residência permanente em aldeias, além de inconstitucional, é imoral e desumano, uma vez que aparta, ofende e discrimina famílias, irmãos, pais e filhos e condena os indígenas que residem transitoriamente nas cidades ou em terras tradicionais ainda não regularizadas pelo Estado, à doença e morte pela pandemia”.

Vacinas

Historicamente, as políticas públicas federais sempre privilegiaram os indígenas aldeados e deixaram de fora os indígenas que viviam em cidades.

No entanto, há pelo menos duas décadas as entidades indígenas, como o Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam), vêm se organizando e reivindicando uma mudança nessa diretriz – visto que muitos indígenas se deslocam aos centros urbanos em busca de condições melhores de saúde e educação e mantém os laços familiares e culturais com suas aldeias e cidades de origem. A pandemia de COVID-19 mostrou que essa mudança é mais urgente e necessária do que nunca.

Segundo a Secretaria de Saúde do Amazonas (SES-AM), foram aplicadas no estado, até o final desta quarta-feira, 219.330 doses de vacinas. Os indígenas receberam 50.214 doses desse quantitativo.